terça-feira, 28 de outubro de 2008

EnSaiO sObRe A cEgUeIrA ( O Filme )



“O artigo que se segue, foi publicado no portal “O Vermelho”.

“Metáfora sobre a sociedade tecnológica que, devido à parafernália de equipamentos que captam e proliferam imagens, transformou o século 21 na Era da multivisão, “Ensaio sobre a Cegueira”, de Fernando Meirelles, baseado no romance homônimo de José Samarago, faz do homem uma espécie de cego que precisa descer à barbárie para entender sua natureza. Não precisaria ir tão longe, bastaria zapear a TV para se defrontar com seus reflexos, na maneira como se relaciona com outros seres humanos e o meio ambiente. Uma brutalidade para além das relações de classe, de vizinhança, de trabalho e de trocas de mercadorias. Para atingir seus objetivos, ele utiliza-se das mais diferentes armas: do míssel que destrói vidas no Iraque e no Afeganistão à conivência cro-magnon no Haiti, nos países europeus que tratam os imigrantes como subumanos e nos aglomerados das metrópoles brasileiras onde gangs, milícias e policiais cerceiam o direito à esperança dos que nelas moram. No filme de Meirelles/Saramago a megalópole envidraçada, com seus carros velozes e homens e mulheres emoldurados em roupas de grife, esconde em suas vísceras seres cujas vidas só têm sentido pelo que possuem. Despidos desses adornos, transformam-se em meros cro-magnons, capazes de descer aos graus mais baixos de seus instintos animais para sobreviver. Para chegar a isto são segregados no que mais têm de representativo na sociedade tecnológica: a visão, aquilo que lhes permite ver a estética, sem adentrar a seu conteúdo. O design então os leva a procurar estar de acordo com tudo que lhes permita traduzir em seu corpo e ao seu redor (casa, móveis, carros, roupas): de seu gosto a modo de ver. Não é à toa a preocupação insistente de todos com banho, aparência e cosméticos. Instinto animal se sobrepõe à civilidade Quando enfim perdem a visão se igualam num quesito único: o instinto animal sobrepõe ao da civilidade. Até chegar ao degrau mais baixo do comportamento cro-magnon, passam por uma série de experiências, sendo a mais cruel a perda estética, do ver ao redor não o outro, mais o objeto de desejo. Numa megalópole qualquer do primeiro mundo, de repente o japonês (Yusuke Iseya) globalizado perde a visão e esta se generaliza. Um detalhe simples vem depois, numa espécie de detonador da narrativa, não esquecendo que o objeto de desejo é também igual para todos: um já o satisfez, o outro precisa roubá-lo do outro para obter a mesma satisfação. E, ao fazê-lo entra no ciclo dos que serão privados da visão: não ver ao redor mais uma vez iguala a todos. Terão que atender apenas aos instintos mais básicos: comer, beber, dormir e, se possível, fornicar. E é nisto que se resume, enfim, “Ensaio sobre a Cegueira”. Seria muito simples, pois a linearidade com que Meirelles o montou não deixa sequer dúvida sobre o que pretendia: contar uma história sobre a necessidade de o ser humano enxergar o outro e, desta forma, igualar a todos de uma forma que isto represente ver no outro seu espelho, não seu opositor, aquele a quem precisa derrotar para continuar vivendo em grande estilo. Isto, por mais contraditório que pareça, ele só irá perceber quando atingido pela epidemia que cega a todos. Mas então não mais será um ser humano, mas um animal em plena vida selvagem, lutando para sobreviver nas piores condições. Ali estão asiáticos, africanos, europeus, norte-americanos, sul-americanos, numa espécie de espelho do mundo globalizado, mas igualado em sua selvageria. As metáforas no cinema sempre se prestam a visões desencontradas. De repente, como em “Invasores de Corpos”, de Don Siegel, as pessoas podem ser tomadas por algo que não sabem o quê e passam a ter comportamentos estranhos. Transformam-se em vegetais, que perambulam pela cidadezinha do interior, levando pânico à classe média estadunidense. E, supostamente, estavam possuídos por vírus alienígena, metáfora da Guerra Fria, para as idéias comunistas, manipuladas pelo macartismo. Em “Ensaio sobre a Cegueira”, a epidemia se espalha sem que se saiba qual é sua causa, nem Meirelles, nem Saramago acham necessário dar explicações. Mas poderia significar uma oposição à maciça exposição visual à que todos os segmentos sociais estão submetidos, como forma de tornar as mais diversas regiões do planeta mais próximas uma das outras e facilitar o acesso aos produtos vindos de suas partes mais distantes. Daí estar, no filme, bem representados pelos mais diversos povos, igualando-os em sua selvageria. E quando se encontram nos galpões onde estão confinados se comportam com a mesma brutalidade, porém, estão despidos da visão que os diferencia. Mal não vem de fora, sim de dentro de cada ser humano O mal, ao contrário do visto nos filmes de ficção científica, não vem de fora, mas de dentro de cada um. Não foi plantado ali por algum “gênio do mal”. Faz parte da natureza de cada um deles. Do Rei da Ala 3 (Gael Garcia Bernal) que se transforma num brutal explorador da Ala 1, usando seu poder de distribuir comida para fazer com que os outros cumpram sua vontade, ao japonês que quer punir o Ladrão (Don McKellar) que levou seu carro. Ao lado deles está o Oftalmologista (Mark Rufallo) que, dependente de sua Mulher (Julianne Moore), a única que manteve a visão, se deixa envolver com a Moça de Óculos Escuros (Alice Braga) e o Homem de Venda Preta (Danny Glover), o mais lúcido e poético de todos. É dele a frase mais encantadora do filme, quando diz à moça de óculos escuros que não lhe diria o que pensa, pois ela não sabe o que são os desejos de um velho. Um galanteio de cavalheiro num mundo onde a sutileza não faz mais parte das regras de sedução. E também mostra o quanto a percepção excludente, racista, pode estar equivocada. Em certo momento, quando o Rei da Ala 3 ameaça deixar famintos e à míngua todos os cegos trancafiados num pavilhão, um deles diz que não gostou do jovem porque, pelo timbre de sua voz, tratava-se de um negro. Uma ironia que faz o expectador rir e logo cair em si do ridículo que isto representa. De detalhe em detalhe, alguns iguais a este, “Ensaio sobre a Cegueira” vai montando sua narrativa, cada vez mais apocalíptica. Toda uma construção em volta dos cegos torna-se inútil; nada daquilo é-lhes de alguma utilidade. Não importa onde eles estejam, com que roupa estão, se estão nus, se caminham ou deitam sobre o colchão ou uma táboa; o que sobressai é sua condição animal. O ver então é mais para o espectador situar a visão como algo que não o faz divisar entre o enxergar o outro e os objetos de desejo. Filme é metáfora da visão nos tempos da mídia globalizada Ao estarem na casa do dentista, os objetos ganham vida, luminosidade, principalmente quando têm a sensação de segurança. Outra vida poderá começar a partir dali. A questão é se conseguirão, eles, os cegos, entender a lição. “Ensaio sobre a Cegueira” tenta globalizar sua idéia sobre a barbárie dos tempos atuais. Usa para isto a projeção de um espaço unificado, em que o personagem passa de Ontário, no Canadá, para Montevidéu, Uruguai, e desta para São Paulo, sem que se percebam as nuances; as características arquitetônicas. A cidade é a mesma, em qualquer país, dada que os prédios, os elevados, as lojas com seu design, tais como se vê nos shoppings-centers, se equivalem. E as pessoas, embora de diferentes etnias, não se diferenciam. Enfim, um planeta supostamente sem diferenças de classe ou de objetivos, senão o que prender-se às imagens, à estética única. Estar-se-ia, então, vivendo num mesmo espaço, com uma cultura uniformizada: dos MacDonalds, da Walt Mart, da Versace, etc., sem possibilidade de ter o diferente. No entanto, o mundo é cada vez mais diferenciado. Dos turbantes indianos ao bureu africano, da goiabeira cubana à camisa florida das Bahamas. E, se os cegos do filme são indistintos deve-se mais à projeção da globalização, que não permite sequer que os personagens ganhem nome. O que os diferencia são as profissões: a Moça de Óculos Escuros ganha vida como prostituta de luxo, o Oftalmologista vive de sua profissão, sua Mulher sobrevive por enxergar, o Rei da Ala 3 por se tornar um tirano e o Homem da Venda Preta por ter em conta a beleza da vida apenas por sentir o cheiro e o calor da moça de óculos escuros. Nome então é o que menos interessa. Desta forma, “Ensaio sobre a Cegueira”, com sua metáfora sobre a visão nos tempos da mídia, das câmeras de segurança, das filmadoras digitais, da vigilância nos condomínios fechados e nas regiões de grande comércio, reflete mais sobre a padronização globalizante e o consumismo que sobre moral e ética. Diferença não vem do ver, mas do que se possui A barbárie, engendrada pelo sistema capitalista, é o símbolo maior de uma época iniciada no século 20, cujas corporações dão a sensação de que estando em qualquer lugar trazem para as regiões onde estão a falsa sensação de que se vive a mesma emoção em todos os pontos do planeta. Uma padronização só diferenciada pelos que podem ter acesso aos bens que identifica enquanto classe, através de grifes, empresas a que servem e luxuosos apartamentos onde moram. Quando chega ao apartamento onde vive o Japonês que ficou cego primeiro, que acabou de ficar cego, o Ladrão admira-se do ambiente em que este mora. E fica indignado com o que vê. O que os diferencia não é apenas a qualidade de ver ou não, mas A dos bens que possuem. Os dois irão se defrontar adiante com um rancor que os remete a esta seqüência. Também os demais terão detalhes que os distinguirá, mais pela situação em que se encontram do que pela vontade de se igualar. No entanto, a lição aprendida por todos é que juntos poderiam sobreviver. Cada um deles deve-se agarrar o outro para atravessar barreiras, corpos em decomposição, entulho amontoado pelas ruas e avenidas, carros abandonados e uma megalópole entregue ao seu próprio fastio. Até chegar a lugar seguro. O que virá depois pouco importa. Pode ser a retomada da visão, mas pode ser também a tomada de consciência do outro. Em suma, “Ensaio sobre a Cegueira” é um exercício sobre a modernidade. Não tem o mesmo impacto que “Cidade de Deus”, ainda que seu apuro técnico a torne um exercício sobre o distanciamento provocado pela cegueira, com o branco significando a ausência de objeto e, ao mesmo tempo, a sensação de vazio. E, portanto, padroniza sensações e tato. A uniformização da megalópole, traduzindo globalização fica numa faixa indistinta, igualando a todos pela cegueira. Uma obra como “Cidade de Deus”, que reflete sobre a marginalização presente tanto no Brasil quanto na periferia da Comunidade Européia, onde vivem os imigrantes do Terceiro Mundo, sintetiza melhor os percalços da globalização, que a brancura de “Ensaio sobre a Cegueira”. Se tira a identidade de filme nacional, distanciando-se da cor local, segue a tendência do cinema atual de pontuar diversas culturas numa narrativa única, a exemplo de “Babel”, de Alejandro González Iñarritu, que se move em vários cenários. Vai do Oriente Médio ao Japão, passa pelos EUA e chega ao México. E se prende às regras da produção internacional que, usando cenários, atores e histórias cada vez mais globalizadas, tentam atender ao senso comum não de um país, mas do mercado planetário. Torna-se, desta maneira, um produto híbrido que pode ser filmado em qualquer país. Uma tendência que afasta a discussão de problemas locais de valor universal, igual a “Cidade de Deus” e, por que não, “Linha de Passe”, de Walter Salles. E mostra o quanto se pode estar se distanciando de pequenos temas e partindo para “grandes temas”, sem cor local, que sustentam grandes produções ao gosto das corporações cinematográficas, ainda que, por instantes, independentes.”

Nenhum comentário: